“Bebê Rena” concretiza os maiores pesadelos do macho hétero branco

Série britânica sucesso na Netflix é uma espécie de "Os Apuros de Penélope" onde, em vez da mulher, é o homem a vítima

Por Cynara Menezes

Quando eu era criança, havia um desenho animado chamado “Os Apuros de Penélope”, onde a mocinha, Penélope Charmosa, era exposta a toda sorte de perigos para então ser salva por seus baixinhos protetores da Quadrilha de Morte. A mesma personagem aparecia também na “Corrida Maluca”, outro sucesso de minha infância, sempre às voltas com perseguidores que ameaçam sua existência.

A imagem da donzela em apuros me veio imediatamente à memória ao assistir “Bebê Rena”, a série britânica que é um estrondoso sucesso mundial na Netflix. Supostamente baseada em fatos reais, “Bebê Rena” conta a história do jovem comediante de stand-up Donny Dunn (Richard Gadd), que passa os sete episódios da série sendo alvo de alguma ameaça, como uma Penélope Charmosa do sexo masculino, inocente, frágil e indefesa, à espera do resgate.
“Bebê Rena” prendeu a atenção dos espectadores do mundo todo pelo suspense e pela personagem fascinante da “vilã” Martha, mas é impossível simplesmente ignorar a homofobia, transfobia, gordofobia, etarismo e misoginia implícitos
A série, também criada por Gadd, é muito boa, bem dirigida, com atores excelentes. Mas tem algo ali que perturba, que provoca incômodo, além da tensão de roer as unhas. A stalkeadora, Martha (Jessica Gunning) é uma mulher gorda, mais velha e feia; o abusador de Donny Dunn, Darrien (Tom Goodman-Hill), é um homem também mais velho e gay. É como se “Bebê Rena” concretizasse os maiores pesadelos do macho branco hétero: ser perseguido por uma mulher gorda, mais velha e feia e ser estuprado por um homossexual.

“Tadinho dele!”, o espectador é induzido a pensar todo o tempo. A mulher gorda, mais velha e feia o persegue, o assusta e “atrapalha” sua vida e ascensão profissional. O homossexual o seduz como a aranha a uma mosca, atraindo-o à sua teia com drogas e promessas, como o mais clichê dos vilões das histórias infantis. Martha é a bruxa de risada escandalosa que o enche de elogios para então assombrá-lo; Darrien é o lobo mau que vai dar “doces” para a Chapeuzinho e então comê-la. A figura do homem é vitimizada o tempo todo: há perigos lá fora para os rapazes também, pobrezinhos.

Quando Donny se descobre bissexual, a “culpa” é atribuída ao abusador. Ele mesmo diz que, não fosse pelo estupro, jamais descobriria que suas certezas de gênero não eram tão sólidas. Corroído pela dor e pela vergonha, Donny se entrega ao sexo desenfreado com homens e mulheres, e sofre com isso. Encontra o amor na figura da bela transexual Teri (Nava Mau), mas lhe falta coragem para assumir publicamente o romance, que mantém oculto entre quatro paredes. Mais tarde, o fato de ter perdido Teri é posto na conta da perseguição de Martha, não na enorme covardia de Donny.
Um aspecto em particular me causou indignação: enquanto a mulher gorda, mais velha e feia é denunciada à polícia e presa, o estuprador escapa incólume. Martha tornou a vida de Donny um inferno, é verdade, mas Darrien o drogou e sodomizou. Por que nunca foi denunciado?
No final, o indefeso macho hétero branco acaba resgatado dos perigos por duas mulheres negras. Mas isso não o impede de continuar alimentando seu frágil ego com os elogios da stalkeadora Martha. Donny usa a obsessão de Martha para viver e ganhar confiança em si próprio. Tampouco o abuso sexual que sofreu o impede de reencontrar com o homossexual poderoso que vai ajudá-lo a subir na carreira. Tem um aspecto em particular que me causou indignação: enquanto a mulher gorda, mais velha e feia é denunciada à polícia e presa, o estuprador escapa incólume.

Na vida real, está acontecendo uma busca frenética pela verdadeira Martha, a stalkeadora. Os tabloides britânicos já apresentaram meia dúzia delas. Mas há muito menos especulação em saber quem foi o produtor de TV que estuprou Richard Gadd, um crime muito mais grave do que stalkear alguém. Martha tornou a vida de Donny um inferno, é verdade, mas Darrien o drogou e sodomizou. Por que não há tanta gente querendo saber quem é ele? E por que ele nunca foi denunciado?

Fico imaginando se a stalkeadora fosse uma mulher linda, magra e jovem. Qual seria a reação do público? Odiaria ela tanto quanto odeia Martha? Ou sentiria um pouco mais de empatia? E Donny, seria zoado por não ceder ao assédio de uma mulher atraente? Sim, mulheres bonitas também stalkeiam. Dê um google e vai encontrar várias –e vários, já que as mulheres são muito mais frequentemente vítimas de stalkers do que os homens: 78% das vítimas são mulheres e 87% dos stalkers são homens.

E se o estuprador fosse um homem heterossexual? Longe da ficção, são homens héteros que estupram gays e não o contrário, a despeito do medinho que machos inseguros de sua masculinidade parecem sentir dos homossexuais. Volta e meia saem notícias de jovens gays sendo estuprados “corretivamente” por homens, e o número de estupros de LGBTQIA+ tem crescido: aumentaram 88% durante os anos em que Jair Bolsonaro, aquele que preferia um filho morto a um filho gay, estava no poder.

“Bebê Rena” prendeu a atenção dos espectadores do mundo todo pelo suspense e pela personagem fascinante da “vilã” Martha, mas é impossível simplesmente ignorar a homofobia, transfobia, gordofobia, etarismo e misoginia implícitos. Que pelo menos a série contribua para encorajar mais homens a enfrentar o tabu do assédio e do abuso sexual que sofreram –até porque colocá-los no lugar de vítimas rendeu uma empatia que poucas vezes vimos com as mulheres na vida real.