O autor de "O triste fim de Policarpo Quaresma" reflete sobre as contradições sociais do Rio de Janeiro
O escritor Lima Barreto (1881–1922) viveu intensamente seus apenas 41 anos. Jornalista e escritor, Afonso Henriques de Lima Barreto publicou romances, sátiras, contos e crônicas. Autor de romances essências da literatura brasileira, como “Recordações do escrivão Isaías Caminha” (1909) e “O triste fim de Policarpo Quaresma” (1911), Lima Barreto vem sendo continuamente redescoberto como um dos principais escritores do brasileiros do século 20.
Filho de uma professora e de um operário gráfico, ambos afrodescendentes, Lima Barreto chegou a ingressar na Escola Politécnica para se formar como engenheiro, mas abandonou os estudos para ajudar no sustento da família. Começou a fazer suas primeiras contribuições literárias em revistas populares ilustradas no início do século 20, como a “Fon-Fon”” e “Careta”. Também contribuía para periódicos socialistas e anarquistas.
Considerado como um dos principais fundadores da literatura afro-brasileira, Lima Barreto registrou nos seus escritos a condição precárias dos negros brasileiros pós-abolição (em 1888), a aguda consciência do racismo fundante da sociedade brasileira e as contradições urbanas e sociais do Rio de Janeiro, já então uma cidade partida.
Nesta crônica, Lima Barreto evoca o Rio de Janeiro da “belle époque” — quando o futebol ainda se escrevia à inglesa.
Herói!
Os dois velhos amigos desde meses que não se encontravam. Exerciam profissões diversas, em lugares afastados da cidade. Um, o Felisberto, era médico de um posto de profilaxia rural, pelas bandas de Santa Cruz; e o outro, o Teodoro, estava encarregado, como engenheiro, dos mananciais da Gávea e Jardim Botânico. Moravam nos arredores das suas repartições e raramente desciam à cidade, a não ser para receber, no Tesouro, nos começos do mês, os vencimentos de seus cargos.
Eram dois filósofos a seu modo que nada perturbava. Revoltas, exposições, discurseiras, fogos de artifício — tudo isso os deixava frios. Uma coisa, porém, estava sempre a preocupá-los: a educação dos filhos. Nenhum dos dois foi feliz com eles. Felisberto, além de outros, tinha o mais velho, Samuel, que não dera para nada. Tudo estudara e nada aprendera. A sua mania era o tal de football. O pai lutou em vão para que metesse no bestunto algumas noções com que ele pudesse ser, ao menos, amanuense. Era inútil. Desde de manhã até à noite, não fazia outra coisa senão dar pontapés na bola, em discutir corners e o mérito dos rivais. Não ganhava dinheiro; mas, graças à mãe e outros arranjos, tinha-o sempre na algibeira.
O filho mais velho de Teodoro, se não era dado a brutalidades esportivas, não possuía iniciativa de coisa alguma. Formara-se em direito e foi o pai quem lhe arranjou um emprego de guarda no cais do porto, apesar de anel e tudo.
Há anos, tendo, por acaso, se encontrado os dois velhos amigos, Felisberto perguntou-lhe o que fizera do seu filho mais velho, formado em direito.
— O que fiz? Fi-lo guarda do cais do porto.
— Como? Um bacharel?
— Por certo.
— Pois o meu, por não dar pra nada, deixei-o no football.
Como dizia acima, esses dois velhos amigos não se encontravam, há muito tempo, talvez desde que tiveram a conversa acima.
Há dias, eles se vieram a encontrar e foi com efusão de velhos camaradas que se falaram.
— Então, Teodoro, teu filho do cais do porto ainda continua lá?
— Continua; por sinal, que já é escrevente; e o teu?
— Ah! Não sabes?
— Que houve?
— Vai receber cinquenta contos; é um herói nacional.
— Homem?
— Venceu o Campeonato Sul-Americano de Football, com o team nacional. E dizer
que ele não dava pra nada!