O professor como intelectual orgânico docente

Síntese crítica e propositiva para a Educação básica brasileira contemporânea


Valter Mattos da Costa

A teoria do valor-trabalho, desenvolvida por Marx (O Capital, 1867), ajuda a compreender como o trabalho humano produz valor ao transformar a natureza e a sociedade.

Aplicada à docência, permite pensar o que chamo de “valor-trabalho docente”: o valor social produzido pelo professor não se reduz a índices de desempenho ou notas em avaliações externas, mas se expressa no desenvolvimento humano e crítico dos estudantes. Desconsiderar essa dimensão é reduzir a educação a mercadoria, esvaziando seu potencial emancipador.

A Educação Básica (no campo social da Educação brasileira) encontra-se em conflito e em disputa permanente, por sentido (que escolar queremos?). De um lado, projetos que reduzem a escola a uma engrenagem tecnocrática, subordinada ao mercado e suas métricas de produtividade. De outro, a tradição crítica, que vê na docência uma prática transformadora, articulada com os ideais de emancipação humana.

Esse embate não é apenas pedagógico; é também político e simbólico, como ocorre em todo campo social (Bourdieu, O campo científico, 1976).

A experiência concreta da sala de aula permite enxergar com nitidez essa tensão. O espaço escolar do ensino básico, a escola, configura-se como o “chão de fábrica” da docência, onde o professor é submetido a condições de trabalho precarizadas, a pressões por resultados imediatos e a uma constante desvalorização.

Não se trata apenas de fatores isolados, mas de um “meio estressor”: a sala de aula, que incide sobre a saúde psíquica e simbólica do educador. O termo é inspirado na Psicologia, que entende “meio estressor” como o ambiente que reúne estímulos capazes de gerar estresse; no caso docente, intensifica o que pode ser chamado de “mal-estar docente” (a partir de Freud, O mal-estar na civilização, 1930).

Nesse contexto, ganha sentido o conceito que tenho construído, “pedagogia da métrica”, categoria que define a lógica tecnocrática aplicada à educação, onde o valor da prática docente se mede por índices e relatórios.

Essa pedagogia estressante coloca-se como antítese da pedagogia humanizadora, transformadora e emancipadora, proposta por Paulo Freire (Educação como prática da liberdade, 1967; Pedagogia do Oprimido, 1968; Pedagogia da Esperança, 1992; Pedagogia da Autonomia, 1996; Pedagogia da Indignação, 2000), que parte do diálogo, da experiência e da consciência crítica (no público trabalhador de seus círculos de cultura na década de 60 em Pernambuco, “o Ivo nunca via a uva”).

Tal prática pedagógica, privilegiando o mercado ao invés da emancipação, impõe-se o cálculo; ao invés da construção de saberes, privilegia-se uma mensuração fria.

A Psicanálise clínica lacaniana contribui, em meus estudos enquanto professor do ensino básico, para compreender essa engrenagem: se o inconsciente se estrutura como linguagem (Lacan, Escritos, 1966), a educação sob hegemonia neoliberal também o faz, impondo o que entendo como um “léxico neoliberal” – que é estruturante de uma nova visão de mundo capitalista (capital financeiro hegemônico, neoliberalismo, big techs, uberização etc.).

Nesse léxico, figuras de linguagem, que transbordam para o campo social, como metáforas e metonímias, deslocam sentidos: o professor pode deixar de ser considerado um trabalhador, para tornar-se, talvez, um “colaborador” (metáfora), uma espécie de “gerente de ensino-aprendizagem” (metonímia) etc. E a precarização do vínculo se transformará, como engodo, ou uma “cilada” da visão neoliberal, em “empreendedorismo docente”.

O inconsciente é o outro (Lacan), e nesse caso, o outro é a visão de mundo neoliberal (muito mais do que uma economia política), que atravessa o campo educacional com o que também chamo de seus “significantes positivos” — eficiência, inovação, competitividade, meritocracia, empreendedorismo — e, em contrapartida, seus “significantes negativos” — fracasso, incompetência, assistência, preguiça. O resultado é a intensificação da exploração, da sobrecarga, do adoecimento, da exclusão e do desprestígio.

Essa pressão simbólica e material repercute no sujeito professor, cujo “ego em crise” (baseio-me em Freud, O ego e o id, 1923) tenta equilibrar-se entre a exigência institucional, a demanda social e a responsabilidade pedagógica. A crise, porém, não é apenas individual, mas coletiva, revelando-se como um traço estrutural do trabalho docente no Brasil.

Diante desse quadro, a figura do professor precisa ser ressignificada. Mais do que executor de políticas ou transmissor de conteúdos (numa hierarquia vertical em que está na base), o docente deve, conscientemente, se reconhecer e ser reconhecido como “intelectual orgânico docente” (leitura que faço da docência, tendo como expoente Antonio Gramsci – Cadernos do Cárcere, 1930).

Isso significa compreender a prática do professor como produção de conhecimento enraizada nas condições concretas da sociedade, mas capaz de disputar o sentido da educação, inserindo-se no campo educacional não apenas como agente, mas como protagonista da transformação.

As análises da professora Vanessa Maria de Oliveira Borges, em Inserção internacional às avessas: ensino superior na periferia do capitalismo (2022), ajudam a ampliar esse horizonte. Sua pesquisa evidencia como o ensino superior privado no Brasil, e suas IES (Instituição de Ensino Superior), tem sido capturado por lógicas mercadológicas, esvaziando o potencial crítico dos currículos, especialmente pela retirada das ciências sociais e humanas.

Esse processo, embora referido ao nível superior, ecoa diretamente no ensino básico: a mesma racionalidade que ajusta currículos à lógica do mercado também desfigura a escola fundamental, submetendo professores à lógica da métrica e estudantes à lógica da adaptação acrítica.

Assim, pensar a Educação Básica sem essa mediação pode ser incompleto. As conclusões de Borges podem indicar que há uma engrenagem de subordinação sistêmica que atravessa a estrutura educacional brasileira, do ensino fundamental ao superior. A luta pela valorização do professor na educação básica é, portanto, também uma luta contra a mercantilização do ensino em todas as suas etapas.

A crítica, portanto, não basta. É preciso articular propostas. Isso passa pelo fortalecimento da autonomia pedagógica, pela valorização material e simbólica do magistério, pela reconstrução de um projeto de escola democrática e inclusiva. Mais ainda, pela coragem de afirmar que a sala de aula não é mercadoria, mas espaço de formação humana.

Contra a pedagogia da métrica, é necessário reafirmar a esperança pedagógica freiriana. Contra o léxico neoliberal, é urgente instaurar um “léxico de resistência” (conceito que também começo a formular), como ponto de partida, mas que devolva à linguagem escolar o seu caráter de emancipação.

A Educação Básica brasileira só poderá cumprir sua função social quando os professores forem reconhecidos não como peças de engrenagem, mas como sujeitos de pensamento crítico. Nesse sentido, o desafio colocado não é apenas sobreviver ao meio estressor, que tem sido a sala de aula, mas transformá-lo em campo de resistência e criação.

Esse é o horizonte possível para quem entende que o futuro da escola passa, inevitavelmente, pela potência dos seus educadores.