Obviamente, se fosse um país racional, mesmo com todas as restrições de ordem política, o governo teria montado um grupo de estudos para pensar na política monetária pós metas inflacionárias.
Mais uma vez repete-se a maldição de Sísifo.
Depois de tentar enganar até a morte, o rei Sísifo foi condenado por Zeus a uma eternidade de trabalho fútil: ele teria que empurrar uma pedra enorme até o topo de uma montanha, mas sempre que estava prestes a chegar ao topo, a pedra rolava de volta para o início, obrigando-o a recomeçar.
A maldição de Sísifo volta a se abater sobre o país.
Depois do Brasil enganar a morte dos juros altos e conseguir crescer acima das expectativas pessimistas do mercado, as indústrias chegam ao limite da capacidade instalada.
É aí que se dá o salto para o crescimento – ou a pedra caindo para o início da montanha. Nesse momento, as empresas têm que decidir se investem ou não na ampliação da sua produção. É a maneira de adequar a oferta à demanda. É o aumento da capacidade produtiva das empresas que provoca a nova etapa do desenvolvimento.
Aí vem o Banco Central e interpreta esse crescimento como desestabilizador dos preços e aumenta a Selic. O empresário com caixa vai optar entre investir em seu negócio, correr riscos para obter uma taxa de retorno de país civilizado, ou aplicar em títulos públicos, sem risco, e conseguindo uma taxa real de até dois dígitos. É evidente que vai ficar com as aplicações financeiras.
O empresário sem caixa vai analisar as taxas de juros do mercado e constatar que jamais seu negócio conseguirá retorno suficiente para bancar o financiamento.
Assim, a oferta não acompanha o aumento da demanda. E o que ocorre quando isso acontece? As empresas aumentam os preços.
Nas lendas e na economia contemporânea, o mito de Sísifo equivale ao suicídio da democracia – como atestou a vitória de Donald Trump e o avanço da ultradireita por todo o mundo ocidental.
Historicamente, todas as decisões relevantes de política econômica visam atender às demandas dos poderosos. Foi assim com a política monetária e sua última vertente – a agonizante metas inflacionárias. Toda a lógica consiste em proteger o dinheiro do investidor em qualquer circunstância, e fazê-lo crescer especialmente nas crises.
A economia está em crise? Tome juros que o mercado acalma. A economia está em crescimento? Tome juros para não provocar inflação.
Foram vinte anos de estagnação, com o breve interregno do pós-crise de 2008, quando um boom do mercado de commodities permitiu à economia sair do engessamento.
E agora? O modelo morreu. Arrastá-lo até 2026 significará cravar uma cruz no túmulo de um país que já se pretendeu grande.
Obviamente, mudanças de rumo dessa ordem não podem ser tomadas de afogadilho. A vulnerabilidade do governo, nas mãos do Centrão, da Faria Lima e do golpismo militar, é um fato concreto. Por isso mesmo, entende-se a cautela do Ministro Fernando Haddad. Mas há que se estudar estratégias alternativas. O governo como um todo está na situação de água no nariz, evitando qualquer movimento para a água não subir mais. Vai morrer afogado.
O saque do orçamento
Em vez dos impostos serem aplicados em estradas, universidades, estão virando essencialmente enriquecimento da Faria Lima, diz o economista Ladislau Dowbor. A dívida pública drena 8% dos impostos. Se acrescenta juros para pessoas físicas – de quase 51% ao ano, contra 4% na Europa e 4,6% na China – e de pessoas jurídicas – 21% contra 2,5% na Europa – explica-se a profunda desindustrialização brasileira. Dowbor conta que em Paris havia um anúncio de crédito imobiliário a 0,95% ao ano.
Com o custo do dinheiro nesses níveis, a desindustrialização foi consequência óbvia. E os únicos setores que cresceram – mineração e agronegócio – são isentos de tributação.
Juntando custo da dívida, spreads bancários e uma evasão fiscal estimada em 6% do PIB, lucros e dividendos sem pagar imposto, chega-se a um volume monumental de pelo menos 25% do PIB drenado pelo sistema financeiro. E, aí, diz Dowbor, diz-se que tudo isso é porque estamos protegendo o povo da inflação. E toca cortar o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e a Previdência.
Os dogmas da dívida
O primeiro engodo é dizer que a Selic tem que subir por conta do risco fiscal – medido pelo aumento da relação dívida/PIB. É um contra-senso. O maior peso na dívida pública são os juros pagos. Se aumentam os juros, se a taxa real é maior do que a expectativa de crescimento do PIB, há um aumento óbvio da relação dívida/PIB. Então, como pretender que o veneno é a cura?
O economista Demian Fiocca analisou dois períodos distintos em relação às contas públicas.
O primeiro, de 2002 a 2013, no qual conseguiu-se um superávit médio de 3% ao ano. O segundo, de 2014 a 2021, no qual houve um déficit médio de 2,2% do PIB. No entanto, a Selic foi mais baixa no segundo período, mostrando não existir correlação entre déficit público e a Selic.
O fator que pesou é que o primeiro período foi de atividade econômica aquecida, pressionando a inflação, e o segundo, devido à queda da atividade econômica, de inflação baixa. Logo, a Selic é influenciada pela inflação, não pelo risco fiscal.
Aí se entra em um segundo ponto. A Selic não é um preço de mercado, decorrente da compra e venda de títulos públicos. Trata-se de um preço definido pelo Banco Central e com resultados mínimos em relação ao controle da inflação. Em outros países, para atingir as metas de inflação fixadas, a taxa real de juros gira em torno de 1%. No Brasil, atualmente está em 6% acima da inflação esperada e, para atingir a meta de 3% de inflação, fala-se em elevar substancialmente a Selic,
Trata-se de um saque histórico contra o orçamento público. Nos últimos 50 anos, a taxa de juros real média dos Estados Unidos foi 1,3%; a da Inglaterra foi 1%; a taxa de juros real da zona do Euro que começa em 99 então 25 anos foi menos de 0,3%; a taxa de juros real do Japão foi 0,66%.
No ano passado, o Banco Central subiu a taxa real de juros para 7% e a economia continuou crescendo. Então, fica óbvio que o modelo de metas inflacionárias tem baixíssima eficiência. Em grande medida porque o Brasil tem uma dívida indexada em juros. Então, quando aumenta os juros, o BC injeta mais dinheiro na economia, aumentando estupidamente a concentração de renda, porque cortando em política pública, no orçamento, para poder garantir a remuneração do detentor de títulos.
O segundo ponto é supor que a Selic é uma taxa formada pelo mercado, negociada entre quem empresta e quem toma emprestado. É uma taxa fixada administrativamente pelo Banco Central.
Ora, se a questão é reduzir a liquidez, há outras ferramentas que foram abandonadas pelo Banco Central. Pode-se aumentar os depósitos compulsórios (a parcela dos depósitos à vista que os bancos depositam no Banco Central). Pode-se reduzir o prazo dos financiamentos, exigir uma parcela maior de entrada.
Demian lembra que em 1995, o então presidente do BC Pérsio Arida, colocou um compulsório sobre as operações de crédito dos bancos – uma inovação. O que mostra que o tema não é uma questão de opção ideológica, mas de buscar resultados práticos.
A sugestão de Demian é o Conselho Monetário Nacional elevar o teto de inflação para 4% – em lugar dos 3% atuais. Segundo ele, o teto de 3% foi fixado de orelhada pelo Banco Central, sem estudos técnicos embasando a decisão. Depois, baixar a Selic. Com isto, reduz o risco fiscal. E vai controlando a liquidez com instrumentos convencionais, como o compulsório.
Obviamente, se fosse um país racional, mesmo com todas as restrições de ordem política, o governo teria montado um grupo de estudos para pensar na política monetária pós metas inflacionárias.