Jéssica Lemonie (PL), afirma que obra de Jorge Amado é inadequada para adolescentes e insinua “infiltração da esquerda” no ensino
Durante uma sessão da Câmara Municipal de Itapoá (SC), no dia 16 de junho, a vereadora Jéssica Lemonie (PL) protagonizou um novo episódio no embate entre política e educação ao solicitar a retirada do clássico “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, dos materiais didáticos das escolas públicas do município. O motivo, segundo ela, seria o conteúdo “inapropriado” da obra para adolescentes de 12 e 13 anos.
A vereadora, que é apoiadora do ex-presidente Jair Bolsonaro, classificou o romance como uma apologia à “marginalização infantil” e alegou que o livro "romantiza o estupro e a relação sexual entre adultos e crianças". Em tom alarmista, insinuou que a presença da obra nas escolas seria parte de uma tentativa de “infiltração da esquerda” por meio da literatura, destacando o histórico político de Jorge Amado, que foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e eleito deputado federal em 1946.
Sem apresentar documentos técnicos ou pareceres pedagógicos que embasassem seu pedido, Lemonie afirmou que foi motivada por pais preocupados com o conteúdo da obra. Nas redes sociais, publicou um vídeo reforçando seu posicionamento, no qual declara que a iniciativa não se trata de censura, mas de “respeito às crianças e aos pais”.
Obra consagrada e crítica social
Publicado originalmente em 1937, “Capitães da Areia” é um dos livros mais emblemáticos de Jorge Amado e da literatura brasileira. A narrativa acompanha a vida de um grupo de meninos em situação de rua na Salvador da década de 1930, abordando temas como pobreza, violência, abandono, desigualdade e criminalização da infância. Por seu valor artístico e sua crítica social, é leitura frequente em vestibulares e programas escolares.
Especialistas apontam que o objetivo da obra não é “romantizar” crimes, mas despertar consciência social sobre a realidade de crianças marginalizadas — uma função histórica da literatura. “Educação não é esconder o mundo, é preparar o jovem para compreendê-lo e transformá-lo”, comentou uma internauta ao rebater a vereadora nas redes sociais.
Além disso, ao contrário do que afirmou Lemonie, livros não possuem classificação indicativa oficial no Brasil. O Ministério da Justiça e Segurança Pública só regulamenta filmes, programas de TV, jogos e aplicativos. Ainda que algumas livrarias adotem classificações próprias por precaução comercial, isso não possui caráter legal nem pedagógico.
A fala da vereadora gerou forte repercussão negativa nas redes sociais. Críticos acusaram Jéssica Lemoine de censura ideológica e má compreensão da função educativa da literatura. Comentários como “sua ignorância sobre literatura que deveria ser censurada” e “quanto menos conhecimento tiverem as crianças, mais futuro você terá na política” dominaram os debates online.
Outros destacaram a incoerência na crítica à presença de Jorge Amado nas escolas, enquanto autores com históricos conservadores, como José de Alencar, Gilberto Freyre e até Luís de Camões, seguem sendo amplamente estudados. “Se a ideia é banir livros por ideologia dos autores, teríamos que reescrever o currículo inteiro”, comentou um professor de literatura nas redes.
A vereadora, no entanto, mantém sua posição. Em sua fala no plenário, chegou a ler trechos da obra para embasar sua crítica e pediu à Secretaria de Educação que substitua o livro por outro “mais apropriado”. Até o momento, a secretaria não se manifestou oficialmente sobre o caso, nem a Câmara deliberou sobre o pedido.
Literatura como campo de batalha político
A tentativa de retirada de "Capitães da Areia" não é um caso isolado. Ela se insere em uma estratégia frequente da extrema-direita, que usa a educação e a cultura como campos de disputa ideológica. Livros, filmes e conteúdos didáticos são alvos constantes de ataques que evocam o espectro do “marxismo cultural” ou da “doutrinação ideológica”, ainda que raramente embasados em dados concretos.
Especialistas em educação e literatura alertam que esse tipo de iniciativa pode comprometer o desenvolvimento crítico e empático dos alunos, além de restringir o acesso à pluralidade de visões que caracteriza o processo formativo.
Para muitos, episódios como esse evidenciam uma tentativa de moldar a educação pública a partir de valores políticos e morais específicos, o que pode abrir precedentes perigosos. “O que está em jogo não é apenas um livro, mas a liberdade de ensinar, de pensar e de formar cidadãos conscientes”, resume uma nota assinada por docentes de universidades públicas do estado.
O legado de Jorge Amado
Jorge Amado é um dos autores mais traduzidos da literatura brasileira. Sua obra percorre temas como o sincretismo religioso, as desigualdades sociais e a força do povo baiano. Títulos como “Gabriela, Cravo e Canela”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “Tenda dos Milagres” foram adaptados para o cinema, a televisão e o teatro.
Ao retratar os esquecidos e marginalizados, Jorge Amado conferiu voz literária àqueles que a sociedade muitas vezes tenta ignorar. É justamente esse aspecto transformador que torna obras como “Capitães da Areia” tão potentes e, para alguns, tão ameaçadoras.
O futuro da presença do livro nas escolas de Itapoá ainda é incerto. Mas o episódio já serve de alerta: quando a literatura se torna alvo, o que se busca restringir não é apenas o acesso a livros, mas a capacidade de pensar criticamente sobre o mundo.