Por Julian Rodrigues
Entrando no Uber, o carro tinha aquele plástico que separa motorista (de máscara) do passageiro. Já gostei.
Homem branco, uns 50 e poucos anos…
Voz baixa, tranquilo, articulado. Se diz fotógrafo o motorista.
Muito educado, expressa dúvidas sobre a eficácia e segurança das vacinas.
Faz questão de dizer que não gosta de política.
Eu entro contando como minha mãe fazia questão de seguir rigorosamente o cartão de vacinação, e como nos anos 1980 fizemos uma campanha gigantesca contra a poliomielite, citei Albert Sabin e tal.
Muito habilidoso e inteligente, o motorista refutou “narrativas”.
Perguntou se eu acreditava na Globo. Afirmou que falta transparências às vacinas.
Quando eu citei a OMS, ele disse: “Você acredita na OMS, eles falaram que não era para usar máscara e mudaram de ideia”.
Ah, o papo começou com o motorista demarcando: Temos que orar para as coisas melhorarem, acredito muito em Deus.
Impressionado com a boa educação e a capacidade cognitiva do meu interlocutor, eu abordei as redes de fake news e sugeri a diversificação de suas fontes.
Minha ficha caiu quando ele fez menção à corrupção e atacou a China comunista. Percebi que estava diante de um bolsonarista.
Fiquei pensando nas pesquisas sócio-antropológicas que tentam mapear tipos e perfis dos apoiadores do fascista.
Surpreendentemente, o sujeito continuou cordial, sem alterar o tom de voz depois que perguntei em quem tinha votado e ele confirmou a opção 17.
Se declarou apolítico, mas votou no Bolsonaro.
Não confronta a vacina diretamente, mas coloca dúvidas (“morreram grávidas que tomaram Astrazeneca; cientistas afirmam que quem já teve Covid não deve se vacinar, tenho um amigo em Londres que…).
Desci do carro e cumprimentei-o pela postura educada e pelo debate de alto nível. Sugeri que procurasse outras fontes para confrontar suas informações com outros pontos de vista.
Ele citou um site que não consegui anotar, foi onde o “cientista” questionou a falta de transparência das vacinas.
Argumento central do meu simpático motorista, que repetia: não sou contra vacinas, mas…
Desci do carro impactado. A rede de difusão das ideias bolsonaristas é algo muito maior que Bolsonaro.
Não se trata apenas daquele núcleo duro fascista, nem somente das mulheres pobres evangélicas que optaram pelo voto 17.
Há várias camadas aí – isso já sabíamos, claro.
Vai nos exigir muita luta ideológica-cultural e construção de outra estrutura de comunicação para neutralizar/reverter a doutrinação direitista e extremista que fez a cabeça de milhões e milhões de pessoas.
*Julian Rodrigues é professor e jornalista, ativista LGBTI e de DH, mestre em ciências humanas e sociais, militante do PT.