Projeto de Derrite é 'presente escandaloso' para criminosos, diz secretário do MJSP


Sérgio Rodas

O texto substitutivo ao Projeto de Lei Antifacção (PL 5.582/2025), elaborado pelo deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) e aprovado pela Câmara dos Deputados nesta terça-feira (18/11), entra em conflito com o sistema de combate a organizações criminosas. Por isso, se for aprovado, não endurecerá os processos contra esses grupos, e sim os beneficiará. É o que afirma o advogado Marivaldo Pereira, secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Após a ação policial que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, o governo Lula apresentou o Projeto de Lei Antifacção. Derrite, que estava no comando da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, deixou temporariamente o cargo para assumir a relatoria do projeto na Câmara, em uma manobra de bolsonaristas para controlar a pauta.

O texto inicial de Derrite, apresentado na última sexta-feira (14/11), condicionava as investigações conjuntas da Polícia Federal com forças estaduais sobre crimes relacionados a facções criminosas a um pedido formal do governador. Após críticas de especialistas, a previsão foi excluída. A atuação da PF é considerada essencial para combater facções segundo a PEC da Segurança Pública (18/2025) — outra aposta do governo Lula na área — e a decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, em que a corte homologou um plano para a redução da letalidade policial no Rio.

Derrite elaborou, no total, seis versões do projeto, e fez uma série de recuos. Mesmo assim, segundo Pereira, o substitutivo aprovado na Câmara distorce profundamente o projeto do governo. Um dos principais problemas é a retirada de fundos federais, usados no combate a organizações criminosas. Também há diversos conflitos entre normas penais, que acabam por beneficiar facções – especialmente milícias.


“O que está em jogo é a vontade do Poder Executivo, do ministro [da Justiça e Segurança Pública] Ricardo Lewandowski, de todo o governo Lula de endurecer o combate às organizações criminosas, contra a posição de Derrite, capitaneada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de criar embaraços ao avanço da proposta. Isso vai terminar beneficiando o crime organizado”, avalia o secretário.

Bacharel e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Pereira foi secretário da Reforma do Judiciário, secretário executivo e secretário de Acesso à Justiça, todos no Ministério da Justiça e Segurança Pública.

*A entrevista foi concedida à ConJur às 14h30 desta terça (18/11), com base no quinto substitutivo apresentado por Derrite. A versão aprovada pela Câmara foi a sexta, mas os principais pontos abordados por Marivaldo Pereira se mantiveram no texto.

Leia a entrevista:

ConJur — Como avalia o PL Antifacção que acabou aprovado na Câmara?
Marivaldo Pereira — O que está em jogo é a vontade do Poder Executivo, do ministro [da Justiça e Segurança Pública] Ricardo Lewandowski, de todo o governo Lula de endurecer o combate às organizações criminosas, contra a posição de Derrite, capitaneada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de criar embaraços ao avanço da proposta. Isso vai terminar beneficiando o crime organizado.

Nós passamos seis meses construindo uma proposta que dialogasse com o sistema já existente de combate a organizações criminosas, não prejudicasse as investigações em andamento e endurecesse o combate ao crime organizado. Alteramos a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), o Código de Processo Penal, diversas leis específicas, sempre respeitando o sistema em vigor.

O ministro Lewandowski é um dos grandes juristas do Brasil. Ele sabe que, caso se altere uma norma, é preciso ter noção das consequências dessa alteração em todo o sistema. Senão, podem ocorrer consequências imprevistas, que impossibilitem o objetivo a ser atingido. Ou seja, uma alteração que vise endurecer o combate a organizações criminosas pode terminar favorecendo-as, como ocorre com o substitutivo elaborado pelo deputado Derrite.

O texto demonstra que ele não tem familiaridade com o sistema de combate a organizações criminosas. A proposta dele cria um novo marco legal de combate a organizações criminosas, ignorando a existência da Lei 12.850/2013 e criando inúmeros tipos penais. Isso gera um choque permanente entre duas leis. O resultado é que todo investigado poderá ingressar com incidente, com recurso processual toda vez que houver esse conflito de normas penais. E a morosidade beneficia as organizações criminosas. O deputado Derrite, com esse quinto relatório, está beneficiando as organizações criminosas.

ConJur — Quais são as mudanças mais prejudiciais que Derrite fez no projeto inicialmente enviado pelo governo?
Marivaldo Pereira — Nesse momento, às 14h50 do dia 18 de novembro de 2025, estamos falando do quinto relatório. Pode ser que daqui a dez minutos já exista o sexto relatório, daqui a uma hora, o sétimo. O quinto relatório ainda tem problemas muito graves. Nós mandamos uma proposta que tem como objetivo central descapitalizar as organizações criminosas. O deputado Derrite apresentou um relatório que descapitaliza o governo federal, retira o dinheiro utilizado para combater as organizações criminosas.

ConJur — O senhor está se referindo à retirada de recursos dos fundos federais (Funapol, Fundo Nacional de Segurança Pública, fundo antidrogas), estabelecida por Derrite, certo?
Marivaldo Pereira — Certo. Ele retira recursos do Fundo Nacional de Política sobre Drogas, algo que inclusive é inconstitucional, porque decorre diretamente do parágrafo único do artigo 243 da Constituição, que prevê o perdimento de bens utilizados para o tráfico. Derrite transfere esses recursos para os estados e o Distrito Federal, esvaziando completamente o fundo e impactando diretamente o financiamento das ações da Polícia Federal que decorrem os recursos desse fundo.

O objetivo é impedir a Polícia Federal — a polícia mais preparada, qualificada e eficiente — de atuar nas investigações de combate ao crime organizado. No primeiro relatório, apresentado na sexta-feira (14/11), minutos depois da nomeação de Derrite como relator, ele apresentou uma proposta que retirava a PF da condução de investigações sobre organizações criminosas e subordinava a atuação da corporação à decisão dos governadores. Nesta terça (18/11), houve uma grande operação da PF sobre as relações do Banco de Brasília (BRB) com o Banco Master. Imagine se, para fazer a investigação, a PF tivesse que pedir autorização ao governador Ibaneis Rocha (MDB), que defendia a compra do Master pelo BRB? É óbvio que a investigação não aconteceria.

A proposta de Derrite veio semanas depois da maior operação da história contra os braços financeiros das organizações criminosas, que atingiu o centro financeiro de São Paulo. E que se especula que pode chegar a agentes políticos muito próximos ao governador Tarcísio de Freitas. Isso nos traz muita preocupação.

O presidente Lula pediu para endurecer o combate às organizações criminosas. Nós fizemos uma proposta para isso. Mas, infelizmente, parece que esse não é o objetivo de Derrite. Parece que ele veio para Brasília a mando de Tarcísio com outro objetivo. A sociedade deve questionar qual é esse objetivo.

ConJur — Como avalia as tentativas de restrição à atuação da Receita Federal?
Marivaldo Pereira — Na operação carbono oculto [contra os braços financeiros do PCC em São Paulo], as duas agências que tiveram grande destaque foram a Polícia Federal e a Receita Federal. A Receita também teve uma atuação muito forte no Rio de Janeiro com relação àquela refinaria [Refit] que tem ligação com o crime organizado. Coincidentemente, são as duas agências federais que foram diretamente atacadas nos substitutivos de Derrite.

No quinto substitutivo, ele até tenta afastar essa limitação da Receita Federal. Mas continua a limitação às agências. Por exemplo, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) continua não podendo decretar o perdimento de bens pela via administrativa. Há uma falta de conhecimento da legislação por parte de Derrite. Mas isso não é tudo. Há algo de muito estranho nessa história toda.

ConJur — Derrite propôs que o perdimento de bens ocorra de forma imediata, até durante a fase de inquérito policial. Também sugere a criação do instituto de perdimento civil. Determinar a perda de bens sem o trânsito em julgado não contraria o sistema constitucional brasileiro?
Marivaldo Pereira — Derrite criou uma bagunça gigantesca nesse tema. Nós criamos um sistema devidamente estruturado de acordo com a Constituição para aumentar a eficiência do perdimento de bens. O que Derrite propõe dificulta até o que existe hoje. Atualmente, toda vez que há a apreensão de um bem, sua venda é promovida, para preservar o valor do bem. O valor é depositado em juízo, corrigido e, ao final do processo, se a parte é absolvida, a quantia é restituída. Se a parte é condenada, o valor é perdido em favor do Estado pelo fato de ser oriundo de prática criminosa.

Derrite prevê novamente esse instituto que já está disciplinado na legislação, chamado “alienação antecipada”, mas o rebatiza de “perdimento”. Isso não é perdimento. O perdimento só ocorre ao final do processo. O que nós propusemos é algo muito mais efetivo. Hoje, há situações em que o processo não termina, por uma série de razões, como arquivamento, prescrição, morte da parte. Nossa proposta permite que, nessas situações, a ação penal possa continuar para que o Estado avance sobre o patrimônio auferido a partir da conduta criminosa.

Mas essa proposta foi solenemente ignorada pelo relator, que prevê uma ação civil autônoma. Chegamos a discutir a ideia, mas concluímos que dar continuidade à ação penal economizaria tempo e seria muito mais vantajoso para o Estado, que tem pressa em reaver o produto auferido a partir da prática criminosa.

ConJur — Como avalia a proposta de impedir a concessão de auxílio-reclusão a pessoas que estejam no sistema carcerário?
Marivaldo Pereira — De acordo com a Constituição, a pena não pode provocar efeitos para além da pessoa que cometeu a conduta criminosa. Então essa proposta é absolutamente inconstitucional.

ConJur — O texto também aumenta penas e endurece a progressão de regime. Essas medidas realmente são eficazes no combate ao crime organizado?
Marivaldo Pereira — O Poder Executivo entende que é necessário o endurecimento das penas em razão da amplitude que tomou o crime organizado, da complexidade das condutas e do impacto que elas têm na sociedade. Por isso nós propusemos o aumento e o endurecimento de penas. Agora, isso precisa ser feito com critério. O nosso foco está no topo da pirâmide. Nós não estamos banalizando a persecução penal. É preciso focar no patrimônio, onde efetivamente atinge as organizações criminosas.

É até difícil até mensurar qual é o foco da proposta do relator. O texto prevê condutas que, mesmo sem o agente integrar organização criminosa (possibilidade que é prevista expressamente), pode culminar em penas de 12 a 30 anos de reclusão. Entre essas condutas está “impedir, dificultar, obstruir ou criar embaraços à atuação das forças de segurança pública” ou, ainda, “apoderar-se (…), total ou parcialmente, [d]o funcionamento, ainda que de modo temporário, (…) [de] escolas”. Qualquer conduta pode ser enquadrada nesse dispositivo.

Vamos supor que estudantes do ensino médio resolvam tomar uma escola para se manifestar contra a militarização e os maus tratos que eles sofrem. Em resposta, o governador manda o batalhão de choque tirar os adolescentes de dentro da escola. Se as mães se colocarem entre o batalhão de choque e o portão da escola, elas podem ser condenadas à uma pena de 12 a 30 anos de prisão, segundo o texto de Derrite.

É uma proposta absolutamente açodada, que, a pretexto de prejudicar organizações criminosas, vai beneficiá-las e prejudicar os cidadãos que ousem lutar por seus direitos.

ConJur — Por que o substituto de Derrite é, na verdade, mais benéfico às milícias do que o regime atualmente em vigor?
Marivaldo Pereira — O texto de Derrite impede o aumento de pena para as milícias que nós estamos propondo no PL do Executivo. Como ele não estudou o sistema atual de combate ao crime organizado, criou um novo marco legal, que leva ao conflito entre normas. Quando há um conflito de normas penais, prevalece a mais específica. Hoje, há uma norma específica que tipifica o crime de milícia armada. Caso a proposta de Derrite seja aprovada, essa norma, que é a mais específica, continuará valendo, e a pena para milícias não será aumentada.

A proposta do Poder Executivo altera esse tipo penal para poder aumentar a pena do crime de milícia armada. Isso é só um exemplo, acontece com diversos tipos penais previstos no projeto de Derrite. Demandaria uma década de interpretação dos operadores do Direito para se chegar a uma pacificação. E isso vai beneficiar quem está sendo investigado, quem está praticando crimes. Por isso que eu insisto em dizer que Derrite está dando um presente escandaloso para as organizações criminosas de todo o país.

ConJur — O texto inicial do substitutivo de Derrite equiparava facções a organizações terroristas, algo que vem sendo apoiado por bolsonaristas. Depois a medida foi retirada. Como avalia essa proposta?
Marivaldo Pereira — Não muda absolutamente nada no combate às organizações criminosas chamá-las de organizações criminosas ou terroristas. Se o objetivo é aumentar a pena e seu rigor, é preciso alterar a Lei das Organizações Criminosas, exatamente como o Executivo propôs.

Chamá-las de terroristas tem mais a ver com a disputa política que a extrema direita quer fazer, com o caos político que busca instaurar. Talvez seja a primeira vez na história que temos parlamentares demandando que uma nação estrangeira jogue bombas sobre a nossa população [como fez o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), ao pedir ação dos EUA contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro]. Isso porque já tínhamos visto um parlamentar demandar que uma nação estrangeira tribute os produtos produzidos em seu país [como fez o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao pedir que os EUA aumentassem as tarifas sobre produtos brasileiros]. A questão do terrorismo tem mais a ver com isso do que com aumentar o rigor do combate a organizações criminosas.

O Poder Executivo não vai politizar esse debate. Nós estamos propondo uma alteração de todo o sistema de combate a organizações criminosas, para que a harmonia do sistema não seja comprometida. Se essa harmonia for comprometida, os maiores beneficiados serão as organizações criminosas.